A mulher negra de lenço na cabeça e vestes simples no meio da rua com os olhos fechados e a garoa fina a molhar o seu corpo que balançava lentamente de um lado para outro. A molhar as compras acomodadas no carrinho de mercado também estacionado no meio da rua, a molhar os três vira-latas que circundavam a senhora e que dali não arredariam as patinhas até que de lá sua dona resolve se mexer saindo da espécie de transe que a chuva parecia abençoar.
A garoa se debruçando sob o asfalto esopado de água que não cessava em cair. A mulher parada no meio da rua. Os cachorros em volta. O carrinho. As compras. Tudo a molhar. Os carros passando e ignorando a cena, - como se fosse mesmo normal velhinhas com carrinhos de supermercado atravancarem o trânsito, mesmo de ruazinhas pouco movimentadas.
Temos medo de enlouquecer e, portanto, ao menor sinal de loucura, quando nos deparamos com ela, fingimos não ver. Se não vemos não está e sem estar, não existe. Fazemos isso também com a pobreza. Tornamos as pessoas invisíveis quando não atrapalham o nosso caminho. Se pudermos desviar, mesmo que esteja no meio da rua, transformamos os nossos medos em algo invisível, como se fosse mesmo possível ignorá-los. Ignoramos o feio, a loucura é feia. A pobreza também. Cremos cegamente que é possível fingir que nada está lá. Se não está, se não vemos, não nos atinge. Não nos alcança.
E a velhinha parada no meio da rua contemplando o céu com os olhos fechados e a chuva a molhar-lhe o rosto.
Paramos o carro. Descemos. Agora os cachorros também nos circundavam. Interpelamos a senhora. Tiramos daquela espécie de transe. Agradeceu-nos. Levamos o carrinho com as verdurinhas molhadas até a sargeta. E como se a garoa já não a tivesse molhado o suficiente, aquela senhora negra, cujo nome até agora não sei, pequena, frágil, começou a chorar. Vertiam lágrimas dos seus olhos miúdos. Enquanto resmungava palavras desconexas: "tantos filhos e nenhum ... nenhum capaz de se lembrar de mim". O choro se transformava numa espécie de precipício que engolia tudo a sua volta. Engoliu um pedaço de mim também.
Sem reação nenhuma, sem palavra para me cair da boca, perguntei se ela queria água. Água. E a senhora a se afogar ali, a se afogar com a água que lhe brotava dos olhos e se atirava do céu. Não podia eu ter oferecido coisa mais estúpida. Foi quase como oferecer corda em casa de enforcado.
Aquela mulher chorava uma dor genuína, uma dor de abandono. Ali na rua, parada debaixo da chuva, ela descobriu o que pouca gente aceita saber: estamos mesmo todos sozinhos. Perdidos no meio do mundo com um carrinho de compras na mão. Somos sempre mesmo muito sozinhos.
A garoa se debruçando sob o asfalto esopado de água que não cessava em cair. A mulher parada no meio da rua. Os cachorros em volta. O carrinho. As compras. Tudo a molhar. Os carros passando e ignorando a cena, - como se fosse mesmo normal velhinhas com carrinhos de supermercado atravancarem o trânsito, mesmo de ruazinhas pouco movimentadas.
Temos medo de enlouquecer e, portanto, ao menor sinal de loucura, quando nos deparamos com ela, fingimos não ver. Se não vemos não está e sem estar, não existe. Fazemos isso também com a pobreza. Tornamos as pessoas invisíveis quando não atrapalham o nosso caminho. Se pudermos desviar, mesmo que esteja no meio da rua, transformamos os nossos medos em algo invisível, como se fosse mesmo possível ignorá-los. Ignoramos o feio, a loucura é feia. A pobreza também. Cremos cegamente que é possível fingir que nada está lá. Se não está, se não vemos, não nos atinge. Não nos alcança.
E a velhinha parada no meio da rua contemplando o céu com os olhos fechados e a chuva a molhar-lhe o rosto.
Paramos o carro. Descemos. Agora os cachorros também nos circundavam. Interpelamos a senhora. Tiramos daquela espécie de transe. Agradeceu-nos. Levamos o carrinho com as verdurinhas molhadas até a sargeta. E como se a garoa já não a tivesse molhado o suficiente, aquela senhora negra, cujo nome até agora não sei, pequena, frágil, começou a chorar. Vertiam lágrimas dos seus olhos miúdos. Enquanto resmungava palavras desconexas: "tantos filhos e nenhum ... nenhum capaz de se lembrar de mim". O choro se transformava numa espécie de precipício que engolia tudo a sua volta. Engoliu um pedaço de mim também.
Sem reação nenhuma, sem palavra para me cair da boca, perguntei se ela queria água. Água. E a senhora a se afogar ali, a se afogar com a água que lhe brotava dos olhos e se atirava do céu. Não podia eu ter oferecido coisa mais estúpida. Foi quase como oferecer corda em casa de enforcado.
Aquela mulher chorava uma dor genuína, uma dor de abandono. Ali na rua, parada debaixo da chuva, ela descobriu o que pouca gente aceita saber: estamos mesmo todos sozinhos. Perdidos no meio do mundo com um carrinho de compras na mão. Somos sempre mesmo muito sozinhos.
O mais triste é que é verdade.
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