quarta-feira, 30 de junho de 2010

“O inferno dos vivos não é algo que vai existir: se existe, já está aqui, o inferno de nossa vida cotidiana, formado pelo fato de vivermos juntos. Há duas formas de suportá-lo. A primeira é a que muitos acham fácil: aceitar o inferno e tornar-se parte dele, até não o ver mais. A segunda é arriscada e exige constante atenção e aprendizado: no meio do inferno procurar e saber reconhecer o que não é inferno, fazê-lo durar, dar-lhe espaço”.

As Cidades Invisíveis, Italo Calvino.


É por essas e muitas outras que o acho genial.

sábado, 26 de junho de 2010

Da arte do desapego

Tenho praticado. E ao contrário do que se pode pensar, não consiste em perder tudo de uma vez, mas sim aos bocadinhos. Um pedaço de cada vez. Primeiro a presença e depois, para que os olhos se desapeguem, a imagem. Aos poucos os grandes textos sem coesão ou coerência vão perdendo espaço, depois os parágrafos vão sumindo, as frases serão libertas até que reste somente uma palavra. Uma. Sempre a mais difícil de desapegar, mas que se consegue perder ao parar de repetir.
Adiante aprende-se a se livrar do cheiro descobrindo outros, que serão melhores se assim quiser. A arte do desapego não exige desamor, ao contrário, só é possível se desapegar daquilo que se ama porque são as únicas coisas que nos pertencem. Com paciência pode-se perder o som da voz, as canções e os bares de uma rua qualquer. Os ruídos vão se despertencendo até o silêncio tomar lugar e tudo se transformar em calmaria e quietude. Sabe-se, então, que o processo está próximo do fim. Desapegando um dia de cada vez até que os desejos não atendidos sejam somente uma parte daquilo que não se pôde viver e que, no entanto, pôde-se deixar para trás. A arte do desapego exclui o mal que supunhamos fazer bem.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Espaços abertos

Se existe alguma brincadeira de dizer verdades é porque sempre é tempo de dizer mentiras, e estas, ao contrário do que se pensa, não são exceções, são regra. Se todo mundo perdeu a esperança no meio do caminho não sou eu que vou reencontrá-la agora, não é?

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Inventando finais

Tenho lido muito, mas não o suficiente. Leio até a cabeça doer ou até que eu seja incapaz de distinguir uma linha da outra. Leio e durmo. Bebo café e fumo. E leio. Vou procurando outras histórias para esquecer a minha, vou vivendo a vida de outras pessoas. Fui Kianda, Oskar, Ermes Marana, Cauby, Bartolomeu Falcato, Lavínia, Besdômny, 3,14, contudo não ouso ser Ludmila, nem no livro do Calvino, com dois Ls. Quiçá o Leitor. Quiçá. Ainda assim, por incrível que pareça, as histórias que leio recontam a minha própria história. Eu sei, enxergamos aquilo que queremos, e mesmo tapando os olhos eu ainda vejo pelas frestas entre os dedos. Posso até reconhecer parte de mim e de você e de outros tantos nas páginas dos livros, entretanto não é isso que procuro. Busco os romances porque preciso de um final, e se não o tenho na vida, tê-lo-ei em todos os livros lidos e relidos.
Agora, sinceramente, não importa mais. Não faz mais diferença. Já que não posso construir histórias recorro a quem sabe e pode. Gente que inventa passado. Gente que inventa gente. Eu poderia ter inventado você. Na verdade acho até que inventei. Construi um simulacro do que eu acreditava ser. E fui inventando. Sigo inventando. Invento cartas, invento futuros, invento infâncias felizes em lugares que só a saudade pode alcançar. Vamos brincar de construir realidades. Dentro e fora daqui. A doutorazinha a curar loucuras em mim. Há de curar. Nesses delírios a gente sempre pensa que é Ana Cristina. Um dia se atira janela a fora. Belo belo. Tenho tudo que fere.

sábado, 5 de junho de 2010

Ladainha: por onde anda José?

José não sabe a hora de parar. Ninguém conhece os seus limites, nem ele, e por isso é que se testa tanto, quer ver o quanto pode suportar. Álcool demais nunca é álcool bastante. Tem gente que bebe para esquecer, José não, ele bebe toda noite é para lembrar. Seja o amor que perdeu ou as crianças que esqueceu pelo caminho. De vez em quando pede perdão por não saber ter ido adiante, mas ele é livre demais para ser de alguém. José é do mundo. Do mundo dele, claro.
Todos os dias, como já disse, José bebe porque precisa se encontrar e lembrar de toda a vida que não pôde viver. Sim, ele bebe para se culpar. Assim como alguns cristão se mortificam, José faz descer pro fundo da garganta toda água ardente que encontra para expiar a própria culpa. As ambições que jamais teve ou que perdeu pelo caminho, é por isso que bebe, precisa recordar. Às vezes chego a ter dó de você, José, que vive rodeado de gente, de mulheres, de amigos, mas que dorme sozinho toda noite no quarto de sua infãncia na casa dos pais. E que de tão sozinho desaprendeu até a chorar. Portanto bebe para tornar a lembrar. E chora. Chora feito criança pequena, de soluçar. Se tenho tanta pena de você assim, é porque ao te ver miúdo, chorando sozinho eu lembro mesmo de mim.
José não sabe construir histórias, vai deixando-as incompletas por onde passa. Não sabe terminá-las ou dar-lhes um rumo. Apenas começa e a vida se encarrega de dar cabo daquilo que ele não soube continuar. Falar de José é falar de corda em casa de enforcado. Quantas mães ficaram a chorar por aí depois das filhas terem conhecido tão ilustre figura? Ah, ele se acaba porque sabe que veio a essa vida a passeio. Sabe que é veneno na boca do outro, portanto condenou-se a andar sozinho, e a idéia não funcionou. Tudo que toca, José destrói, transforma sempre uma parte em ponto escuro. José nasceu para ser só dele mesmo. E se não houvesse eu conhecido sua mãe diria até que ele é uma figura mítica, nascido da própria sombra ou luz. Ou do poema de Carlos Drummond. Quem vai saber? O poeta, talvez, estivesse mesmo pensando em José quando fez todas aquelas perguntas em seu célebre poema, porque o José de quem falo agora também não sabe para onde marcha. E nem toda bebida do mundo foi suficiente para que ele recordasse o caminho.